Dos 11 ministros, 9 votaram para derrubar tese que limitava demarcações. Pelo marco temporal, povos originários apenas teriam direito às terras que já eram ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Os indígenas que estavam reunidos em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, nesta quinta-feira (21), comemoraram a derrubada do marco temporal com cantos ancestrais.
Dos 11 ministros da Corte, nove votaram para derrubar a tese que limitaria demarcações de terras indígenas (saiba mais abaixo). A tese defende que indígenas só têm direito às terras que já eram tradicionalmente ocupadas por eles no dia da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Um dos cantos foi entoado na língua Xokleng da família linguística Jê. De acordo com a indígena Jéssica Priprá, de 31 anos, do povo Xokleng, a música não tem uma tradução específica, mas fala do sentimento dos indígenas, rituais e rezas.
“Estamos invocando os nossos ancestrais, os nossos espíritos e dizendo que a gente conseguiu”, explica. De acordo com Jéssica, a letra é algo como:
“Nós, que não cansamos, viemos buscar a nossa terra.”
Foi na Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ, onde vivem os povos Xokleng , Guarani e Kaingang, em Santa Catarina, o início do debate sobre o marco temporal, em 2013. À época, a Justiça Federal no estado aplicou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ
Outra música, do povo Kaiapó, celebrava a vitória em nome dos antepassados. Segundo o grupo, é um canto de felicidade, que remete a algo como:
“O povo Kaiapó, do Pará, canta a tradição dos antepassados, avós e bisavós que não puderam estar neste dia de comemoração. Vitória, comemoração, felicidade.”
‘Presente para o nosso povo’
Jaciara Priprá, de 25 anos, da etnia Xokleng, fala emocionada que, após o STF alcançar a maioria de votos contra o marco temporal, ela pensa em seus antepassados. “Fico muito emocionada, porque nem todos eles puderam estar aqui hoje. Muitos já partiram e a gente vê que a luta não para, muitos morreram tentando recuperar o território”, diz.
“Eu estou sentindo um alívio em poder ter meu território de volta. A gente passou por muita coisa, não consigo descrever o que estou sentindo. É um alívio sentimento de vitória, sentimento pelos antepassados”, diz Jaciara Priprá.
Para Keli Regina Caxias Popó, de 42 anos, o resultado do julgamento no STF “é um presente para o povo indígena” e para ela, que comemora 43 anos nesta sexta-feira (22). Segundo ela, que também é da etnia Xokleng, a decisão da Corte garante a preservação dos conhecimentos tradicionais dos povos originários.
“Meu pai era uma liderança e faleceu em 2019. Outras lideranças que estavam nessa luta não puderem ver esse resultados. Aqui estão todos os descentes desses líderes, que fazem parte da memória, da luta que nossos pais passaram, a fome, necessidade, é uma luta deles. É uma vitória imensa para nós. Nossa terra representa a vida e a cultura do nosso povo”, diz Keli.
Representantes do povo Tapuia, Muriti e Beka, de 26 e 15 anos, contam que ficaram emocionadas com a decisão da maioria dos ministros do STF. As jovens vieram das terras indígenas do Ceará e da Bahia para acompanhar o julgamento em Brasília.
“Isso foi muito importante para a gente, vários parentes emocionados. Vamos continuar nessa luta, que vem desde 2019 com essas votações que demoram, mas a gente está bem feliz”, diz Muriti.
Beka Tapuia destaca que o resultado do julgamento no STF traz paz para os povos indígenas, mas que a luta pela busca pelos direitos e pela demarcação das terras indígenas continua.
“A gente vê a nossa cultura sendo morta, sendo tirada de nós. A gente vem aqui, a gente quer mostrar que a gente está aqui, mesmo que sejamos só nós duas representando o nosso povo. Quando a gente vê um resultado desse, que é uma coisa muito boa, a gente pode pensar no futuro, nos nossos parentes, e ter um pouco de paz. Mas isso daqui é só o começo”, diz.
Na prática, a tese do marco temporal permite que indígenas sejam expulsos de terras que ocupam, caso não se comprove que estavam lá antes de 1988, e não autoriza que os povos que já foram expulsos ou forçados a saírem de seus locais de origem voltem para as terras.
Processos de demarcação de terras indígenas históricos, que se arrastam por anos, poderão ser suspensos. No STF, os ministros analisam o tema a partir de uma ação envolvendo uma terra indígena em Santa Catarina.
Em 2013, a Justiça Federal no estado aplicou a tese do marco temporal ao conceder ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina a reintegração de posse de uma área que é parte da Reserva Biológica do Sassafrás, onde fica a Terra Indígena Ibirama LaKlãnõ. Na região, vivem os povos Xonkleng Guarni, e Kaingang.
A decisão mantinha entendimento de 2009, de outra decisão da Justiça Federal em Santa Catarina. A antiga Fundação Nacional do Índio (Funai) apresentou um recurso ao STF, questionando a determinação. E é esse o pedido analisado pela Corte.
A Funai afirma que a aplicação do marco temporal fere a Constituição, especificamente o artigo 231, que trata da proteção aos povos indígenas. Para a fundação, o direito de posse daquele que consta como proprietário no registro de imóveis não pode prevalecer em detrimento do direito originário dos índios.