Acordos ignoram dívida de R$3 bilhões e tradição de Cuba em não pagar empréstimos
Em visita a Cuba, ministros que acompanharam o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinaram acordos de cooperação, também chancelados pelo presidente, que devem, segundo o governo, “ampliar a troca de tecnologias entre os dois países”. Os memorandos de cooperação incluem as áreas de saúde, ciência e tecnologia e desenvolvimento agrário.
Na área de saúde, foi assinado um protocolo de cooperação que prevê a troca de tecnologias e conhecimento em temas como doenças crônicas, vacinas, biotecnologia e biodiversidade, doenças transmissíveis e negligenciadas. O protocolo também prevê o desenvolvimento de produtos inovadores. “A importância desse acordo é que o Brasil se beneficia de um conhecimento de ponta que Cuba desenvolveu, investimentos de anos nessa área. Nesse desenvolvimento conjunto, o Brasil entra com sua expertise em pesquisa clínica e a sua capacidade de produzir em escala, em laboratórios públicos e laboratórios privados”, explicou a ministra da Saúde, Nísia Trindade.
O documento inclui ainda uma associação entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Biocubafarma. Essa associação vai possibilitar transferência de tecnologia para a produção nacional do NeuroEpo, um medicamento inovador usado para retardar os efeitos do Alzheimer, e da Eritropoietina, utilizado no tratamento de anemia por insuficiência renal, leucemia e outras doenças.
“Nós queremos retomar, não só na área do complexo industrial de saúde, mas em outras áreas mais abrangentes, como a bioeconomia. Queremos fazer uma nova reunião do comitê em 60 dias. É uma relação em que a gente aprende e aquilo que a gente tem mais expertise a gente oferece, a gente procura uma lógica de cooperação e parceria saudável, que faz com que a gente encontre soluções pro Brasil e pra Cuba”, afirmou a ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos.
Entretanto, o governo brasileiro nutre esperanças de reaver os US$ 600 milhões (cerca de R$ 3 bilhões, na cotação atual) que emprestou a Cuba durante as gestões passadas do PT para a construção do Porto de Mariel, em Havana.
Fontes ouvidas, garantem que isso não vai acontecer: Cuba não tem dinheiro nem tradição de pagar empréstimos.
Antes de financiar as obras, no segundo mandato de Lula (PT) e no primeiro de Dilma Rousseff (PT), os brasileiros poderiam ter perguntado aos argentinos.
Cuba contraiu, em 1974, dívidas com a Argentina para comprar milhares de tratores, caminhões e automóveis. Até hoje não pagou. O montante da época, de US$ 1,3 bilhão (cerca de R$ 6,5 bilhões), hoje equivale a US$ 15 bilhões (cerca de R$ 75 bilhões).
A Venezuela, outro país hoje quebrado, emprestou valores desconhecidos para Cuba. “No caso do Brasil, se manteve uma certa institucionalidade, um registro da dívida”, observa o jornalista cubano independente Bóris González Arenas, de Havana.
“No caso da Venezuela, não se tem a menor ideia do montante de dinheiro transferido. Os dois países, Argentina e Venezuela, vivem hoje na total miséria.”
Segundo González, pessoas que trabalharam no porto lhe relataram que “havia muito sobrepreço na obra”, executada por empreiteiras brasileiras
envolvidas no escândalo da Lava Jato.
“Cuba não tem dinheiro”, afirma o jornalista. “O governo brasileiro não pode ter a expectativa de receber dinheiro.”
Cuba não tem pagado nos últimos dois anos por exemplo aos credores do Clube de Paris, mesmo depois de ter feito um acordo altamente favorável, em que foram perdoados os juros. González especula que “pode ser que Cuba pague alguma coisa em serviços ou benefícios, para evitar que a dívida cresça”.
González acrescenta: “Fidel reproduziu na esfera internacional o que alguns dos seus amigos afirmam que ele fazia nas relações pessoais. Pedia dinheiro e não devolvia. E depois caluniava os que reclamavam”.
Durante a entrevista, o jornalista dissidente contou que, por causa da cúpula do G77+China em Havana, “uma série de defensores dos direitos humanos da ilha está com aceso à internet bloqueado, e em geral toda a população tem velocidade ainda mais baixa que a habitual”.
“O déficit fiscal permanece em 11% do PIB, o que mostra que o governo não tem receitas suficientes para fazer face às suas despesas, razão pela qual não paga a dívida externa e emite dinheiro para financiá-la”, analisa o economista cubano Pavel Vidal Alejandro, que trabalhou na Divisão de Política Monetária do Banco Central de Cuba.
Isso mantém a inflação alta: 42%. “O Estado cubano nunca poderá ser completamente solvente enquanto continuar a preservar e subsidiar o monopólio de um setor empresarial estatal ineficiente”, continua Vidal, hoje professor da Pontifícia Universidade Javeriana em Cali, na Colômbia. “As reformas estruturais fundamentais são tão essenciais quanto o ajuste fiscal para que Cuba possa restabelecer o cumprimento dos seus compromissos financeiros internacionais, incluindo o pagamento do crédito do Brasil para o Porto de Mariel.”
“Cuba tem um histórico terrível no pagamento das suas dívidas, mesmo aos seus aliados ideológicos, e tem muito pouca capacidade de pagar, dada a sua profunda crise econômica”, atesta Ted Henken, professor do Baruch College, em Nova York, que costumava ser consultado pelo governo de Barack Obama sobre Cuba. “Se Cuba pagar, será sobretudo simbólico e apenas após uma renegociação da própria dívida.”
Will Freeman, pesquisador de América Latina do Council on Foreign Relations, também em Nova York, tem estudado as finanças da ilha. “Considerando a situação financeira de Cuba, o reembolso parece improvável”, advertiu. “Cuba está na maior crise econômica em uma geração, semelhante ao ‘Período Especial’ que se seguiu ao colapso do seu antigo patrocinador, a União Soviética.”
Nessa época, nos anos 1990, os cubanos emagreceram, conta quem viveu esse período na ilha.
O turismo em Cuba, importante fonte de moeda forte, não se recuperou depois da pandemia. “Sem os dólares do turismo, com a indústria açucareira em queda livre e com poucas alternativas econômicas no horizonte, mesmo serviços como hospitais e educação estão ficando sem recursos básicos”, analisa Freeman. “O reembolso das dívidas externas provavelmente não está no topo da agenda.”